Conscientização corporal e autoconhecimento
- Beatriz Tonglet
- 11 de jul. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 14 de mai. de 2024

Quando falamos em pensar sobre o corpo, pode ser inevitável o desejo de denominar este ato de tomada de consciência corporal. Porém, como nos ensina Merlau-Ponty (1994, p. 269), “[...] o corpo não é um objeto. Pela mesma razão, a consciência que tenho dele não é um pensamento, quer dizer, não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma ideia clara". Também sobre o tema, Campbell (1990) nos lembra: “é próprio da tradição cartesiana [– que muitas vezes seguimos sem nos dar conta –] pensar na consciência como algo inerente à cabeça como se a cabeça fosse ‘órgão’ gerador da consciência” (p. 28 – aspas minhas). Afinal, a consciência está ligada também ao pensamento, orientado pelo ego, elementos estes todos localizados, para nós, na cabeça. Segundo o mesmo autor, porém, “existe uma consciência também aqui, no corpo” (CAMPBELL, loc. cit.). Esta, a meu ver, envolve outras funções que não apenas o pensamento. No corpo se origina toda sorte de sensações, emoções, percepções, que são, ao mesmo tempo, captadas pela mente, na tentativa de compreensão daquilo que o corpo está sentindo. Entendo que seja nesta conexão que se dê a consciência corporal.
No momento em que ocorre essa união, entre mente e corpo, percebendo-a ou sentindo-a, o in-divíduo tende à integração.
Talvez por isso ela seja tão potente. Mesmo que essa experiência dure apenas alguns segundos, são momentos em que a mente está focada no corpo e este está conectado à mente pela atenção às alterações nele geradas (pelas sensações, percepções, emoções). Por isso tal união traz presença. Se entendermos que ambos, soma e psique, ou corpo e mente, são expressões da mesma substância, como propôs Spinoza, a consciência corporal ou, já agora, a consciência de si mesmo/a/e, não é nada mais do que reconhecer nosso estado, nosso ser, naquele instante; o que somos ou estamos sendo. Por outro lado, este instante pode ser uma pequena degustação de um evento maior, em que uma percepção ampliada ou um estado de consciência expandida nos levam a uma experiência que também pode ser denominada consciência sobre si mesmo/e/a. Ou ainda, um momento de conscientização corporal é um pequeno recorte de um grande processo – que dura toda a vida - que também podemos chamar de tomada de consciência de si mesmo.
Levando em consideração tais fatores, fica mais fácil entender a afirmação de Freud a respeito do ego ser principalmente corporal (LOWEN, 1977, p. 40). Lowen, criador da Análise Bioenergética, desenvolve esse assunto mostrando as respectivas correspondências entre as esferas psíquicas e corporais. Assim, o ego, na medida em que se refere à parte mais superficial da psique, está relacionado também à superfície do corpo, por meio da qual sentimos e percebemos o mundo. Igualmente, “o sistema perceptivo consciente está localizado na superfície do córtex cerebral. Isto nos permite compreender a declaração de Freud, segundo a qual o ego é a projeção de uma superfície sobre uma superfície” (1977, p. 45). Analogamente, o id, como instância mais profunda da psique, também corresponde às profundezas do corpo, ou seja, às regiões e processos dos quais não temos consciência e, ainda, que possuem seu próprio funcionamento, independente de nossa vontade.
E aqui temos a relação que tanto nos interessa: entre a consciência corporal e o autoconhecimento. Como já foi dito,
grande parte da potência da consciência corporal se dá porque ela traz presença,
isto é, a percepção de que se está aqui e agora, ou ainda, a atenção total no momento presente. Este estado atento favorece a tomada de consciência acerca dos próprios pensamentos, emoções, sensações, posturas e atitudes. Em outros momentos, quando nossa atenção está dispersa, ou imersa nos próprios pensamentos e emoções, por exemplo, é comum que nos envolvamos e nos identifiquemos com eles. Nestes momentos podemos dizer que estamos no “piloto automático”. Ao contrário, quando conseguimos nos descolar dos pensamentos que não param e da flutuação das emoções, podemos nos tornar observadoras de nós mesmas, tomando conhecimento sobre o que nos ocorre internamente e que normalmente não percebemos.
Além disso, sentir como é estar em determinada postura ou o modo como o próprio corpo faz um determinado movimento, por exemplo, pode nos levar a perceber o que essa postura ou esse modo significam em termos psíquicos. Assim, formas gestuais ou uma postura recorrente (na Análise Bioenergética podemos falar de padrões corporais, posturais, energéticos etc.) estão sempre ligados a formas determinadas de funcionamento psíquico, que possuímos e não percebemos “no piloto automático”, mas que são desveladas quando tomamos conhecimento delas pela consciência corporal. Um dos grandes saltos no processo terapêutico pela Análise Bioenergética é justamente quando o indivíduo percebe que não é o seu caráter, se desidentificado dele.
O trabalho corporal consciente pode, ainda, nos levar a acessar memórias, conteúdos, imagens, afetos que nos atravessam naquele dado momento ou que o fizeram algum dia. Este acesso propicia compreensões e insights, possibilitando a integração de elementos antes submersos no inconsciente (sombra). Focar a atenção em algum aspecto corporal que antes não se percebia é o mesmo que fornecer energia a conteúdos inconscientes, o que permite que os mesmos emerjam na consciência. E é descobrindo e elaborando estes conteúdos que possibilitamos o processo de autodesenvolvimento, descobrimos qualidades, desafios e limitações pessoais e profissionais e, como consequência, a busca por formas de lidar melhor com estes últimos ou superá-los.
Logo,
aumentar a conexão com o próprio corpo, aumenta a conexão com nós mesmas/os/es.
O que faz da conscientização corporal e do trabalho corporal consciente recursos valiosos para o autoconhecimento e autodesenvolvimento.
PS: esse texto é um recorte da minha dissertação de mestrado, com pequenas adaptações, por isso a linguagem acadêmica... prometo melhorar ;)
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Referências
CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
LOWEN, A. O Corpo em Terapia. São Paulo: Summus, 1977.
MERLEAU-PONTY, M. A fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1994.
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